minha Björk

16/07/2009

É uma coisa tão pessoal que eu não posso escrever sobre ela. Não se pode despejar um acúmulo, espalhando as sensações e pensamentos, jogando fora o que é de dentro. A Björk compõe minha sucessão de estados de alma, e por isso eu não a compartilho com ninguém, seria por certo uma frustração, estados de espírito não encontram simetria. Há um desequilíbrio inerente, sempre separados. O que dizem sobre a união, a universalidade pela música, não acontece neste caso. Por isso também que raramente – muito raramente! – gosto do que leio sobre a Björk, ninguém sabe descrevê-la, tem sempre uma pretensão exagerada por trás, visível. Mas a Björk é tão poética e sublime justamente porque nunca parte de pretensão alguma. Ela é uma das poucas que tem plena consciência de que as melhores formas de arte atingem o sublime partindo do simples, do que se tem controle, e não querendo agarrar em desespero o que está além do próprio alcance. Artistas como esses são uma sorte muito grande, sorte nossa ter Manuel Bandeira, Tchekhov, Virginia Woolf… Enfim, importa é que não quero que ninguém aproveite a Björk como eu, do meu jeito ninguém pode aproveitá-la. Isto faz parte do meu estado de espírito, um pequeno momento – embora grandioso e pesado por dentro. E ainda que agora eu tenha absoluta certeza de que ele não vai terminar nunca mais, daqui a pouco já vai embora.

O cd que estou ouvindo repetidas vezes é o Vespertine, e não consigo, já há vários dias, ouvir nada além disso. Todo o resto é certamente incompleto e supérfluo.

Cada música é sozinha, são bloquinhos independentes, como contos revolvidos por uma atmosfera própria. Como pequenas bolas de neve, cuidadosamente moldadas para que ficassem com o mesmo tamanho (mas não resultam no mesmo tamanho pois foram feitas à mão e aparecem as marcas dos dedos nelas). Mas aí quando se juntam todas em um canto, vê-se que é tudo neve, é um todo que temos certeza que foi sempre assim, nunca separado. Mas aí se olha de perto de novo e se vê algumas marcas de dedos, são mesmo marcas de mãos que moldaram aquelas bolinhas de neve.

Neve como as cores da capa como as cores das músicas. Um contraste de branco e cinza é quase um contraste e às vezes não é. E também, não sei o nome ao certo das cores – os nomes escorregam, são como um lençol menor do que a cama, ou grande demais e sobra para os lados -, elas não têm nome em minha língua, mas o nome é apenas uma parte  da apreensão das coisas, elas, ainda que sem nome, não se deixam esquecer. Torna-se por certo uma tarefa constante para os olhos, as percepções ficam visíveis em todo o lugar, em todo o simples.

Por exemplo, olha-se para o rosto da Björk e ela parece uma criança, também pelo tamanho e pelo nariz arrebitado. Mas aí ela está com os olhos pintados e de repente se enxerga ali uma mulher maravilhosa, atraente ao extremo. Contudo, logo a sensação se dissipa, voltam o rosto e a voz infantis. A música então tem sons alegres, desconexos, e a voz ultrapassa os limites impostos pelo compasso em 4 tempos para quanto tempo ela quiser, cantando todas as notas que precisam ser cantadas, além daquelas que ela decide na hora adicionar, e então todo o resto é agora reflexo da voz, sem ter ultrapassado realmente o compasso. Ela canta e sorri em alguns momentos e junto com o arranjo dá a impressão que aquilo é felicidade extrema, mas então se presta atenção na letra e percebe-se que há ali uma tristeza profunda e constante, não acaba mais, não tem solução para a tristeza. Como tudo o que escreve Tchekhov, ou Bandeira. Aquela melancolia presente, que nos toca e nos deixa tristes, porém não se sabe bem onde ela está. E o que era tão simples é agora complexo e indefinido; ao mesmo tempo muito profundo. Profundidade que não se sabe de onde veio, só que agora já é tarde para se tentar descobrir, ela já está lá. E então a voz fica também melancólica e meio rouca, revela-se de súbito aquele encanto inerente às vozes que são roucas. Já se está a essa altura inteiramente absorto, envolvido, ao passo que tão distante e racional, pensando sobre a própria melancolia escondida. Plenamente lúcido e consciente de si. E de igual modo submetido à música, à voz, aos sons distintos e simples, bonitos, e quando juntos – porque aí entra a orquestra com todos os instrumentos – aparenta com certeza uma coisa pronta que nunca teve de ser construída pois aquilo tudo não precisa se justificar, tal é a naturalidade das confluências, como uma árvore que simplesmente nasceu e é tão bonita, não nos perguntamos como ela se formou já que para nós ela está formada, não tem cabimento ficar se perguntando uma coisa dessas. É assim que a música aparece ante os nossos olhos. Os ouvidos não sabem mais distinguir, estão de todo entregues, portanto são os olhos que têm de trabalhar, mas é uma união tão fluida que os olhos também já fazem parte do conjunto – e nem se teve tempo para notar! É esta a minha experiência, o total envolvimento junto com o cérebro trabalhando, sério, racional, pensando além disso sobre outras coisas, sem saber que é tudo sugerido pela música, sem poder distinguir ao certo, mas com plena consciência de tudo o que está dentro de mim, daquele mesmo modo que a música foi feita: sem a pretensão de tentar agarrar o que está fora, pois não se pode, está irremediavelmente fora do alcance.

Então eu vou colocar esse vídeo aqui, mas não deveria certamente tê-lo colocado, ele não serve para mais ninguém e no entanto ele precisa estar aqui. Sobretudo pelos últimos minutos da música, ouve-se a música só à espera deles e eles passam tão rápido que já se quer ouvi-la novamente. Refletem todas as minhas matizes internas, todas partindo do cinza (ou branco), sensações que talvez daqui a um mês não estarão mais nesse estado, com certeza não estarão, e o sentido do texto vai se afrouxar. Mas o da música não – já terá outro sentido, outro efeito (sem abandonar de vez o anterior) e nunca se torna uma relação de todo madura, pois sinto-me uma criança, achei na música conforto como uma criança o tem na própria cama, sabendo que a mãe dorme ou lê no quarto ao lado, está quieto, mas é certo que ela continua ali e se está aquecido pelo cobertor, pela janela fechada. E no entanto será preciso acordar no dia seguinte e ir para escola, ou trabalhar, ou ir embora. Mas por enquanto se tem o cobertor, enquanto isso se tem a música, um modo de se estar feliz e satisfeito sabendo-se entretanto que o momento deverá ser abandonado em breve, é ter uma felicidadezinha que dentro de nós é enorme e sem limites, ao passo que se tem total consciência de que por trás ou depois uma tristeza serena está esperando, repetida, já um pouco amaciada. Mas a vantagem é que, por exemplo, a aparente limitação em se ouvir uma só canção, um só disco, converte-se em liberdade, liberdade do que é supérfluo e pretensioso, de se ter consciência e assumir as coisas e ao mesmo tempo de se livrar delas, liberdade por dentro, enorme e sem limites, pela arte. Como quando era criança e enquanto brincava concentrada tinha certeza de que naquele exato momento a vida era ilimitada, daria os saltos que quiser, e no entanto sabia que muito em breve a felicidade iria acabar, tinha certeza de que ela iria acabar.