Silêncio. Sala de estar escurecida, Ana sentada no sofá. A sala é mobiliada apenas pelos sofás, um tapete sobre o qual há uma mesinha de centro e é rodeada por livros de todos os lados. Num canto há um pequeno bar. Ana aguarda, olhando para os lados mas demonstra um evidente receio de olhar muito, como que envergonhada, não se sabe. Há um cigarro queimando recostado no cinzeiro, e a fumaça torna a cena ainda menos visível.

Bette se aproxima com duas taças, falando alto. Senta-se na poltrona ao lado do sofá onde Ana está sentada:

– Realmente hoje estava difícil de conversarmos, não é? Não íam embora… Nos nossos minutos a sós, a Bruna chegou. Eu não sabia que ela iria ocupar minha sala hoje.

Ana sorri com os lábios fechados, mas não sorri com os olhos. Bette continua.

– Mas e então? Em tom sarcástico. O que você tem de tão urgente a me dizer?

– Ah, não é exatamente urgente. Eu liguei ao invés de mandar um email porque achei que a questão precisava de um pouco mais de expressividade… Foi esse o significado de minha ligação, não foi urgência.

– Bem, querendo ou não o resultado foi o mesmo, não é? Estamos já aqui. Mas estou curiosa… Pausa. As duas sorriem. Bette se levanta, vai até o bar, escolhe demoradamente uma garrafa de vinho. Depois de retirar duas e recolocá-las no lugar, a terceira leva até o sofá e desta vez senta-se no mesmo sofá de Ana, com o espaço do meio separando-as. Enche as taças e, após repousá-las na mesa, retira seu relógio de pulso, colocando-o também na mesa – a câmera se aproxima revelando que são 23h e alguns minutos -, Ana tosse forçosamente, Bette a olha séria e então resolve virar o visor do relógio para baixo. Ana sorri olhando para baixo, mas Bette se conserva séria. Pergunta:

– Você fuma?

– Você já me viu fumando? – pergunta Ana com raiva.

A cena sofre um corte e Bette refaz a mesma pergunta.

Não, não gosto muito de cigarro. Mas não tem problema, estou acostumada com o cheiro, não apague. – Bette diz que sim com a cabeça, sem olhar para o cigarro aceso em cima da mesa. Ana puxa uma mecha de seu cabelo e começa a brincar com ela. A cena conserva-se assim durante alguns segundos.

Bette, de quem é este cigarro? Pergunta, num tom de exasperação contida, como quem solta involuntariamente o que estivera segurando dentro de si. Aponta para o cigarro. A cena sofre um corte, volta para quando ela enrolava a mecha de cabelo nos dedos. Pergunta:

– Você não fuma, não é?

Bette a olha nos olhos durante alguns segundos.

– Espere aí.

Levanta-se, vira à esquerda, entra no cômodo contíguo de onde saíra no início da cena, ouvem-se passos subindo uma escada. Ana permanece parada apenas passando os olhos pela sala até que os repousa sobre a mesa. Devagar estende a mão, pega o cigarro e aproxima-o de sua própria boca. Cheira-o. Depois, coloca-o na boca mas não traga. Ao ouvir os passos que descem, não se incomoda e continua com o cigarro na boca. Bette aparece na porta com um bolo de papéis seguros no braço direito, mas para ao ver o que Ana está fazendo. Ana, obviamente, sabe da presença da outra, porém não move o olhar que se mantém fixo num ponto indefinido, o cigarro na boca. Depois de alguns segundos, olha para Bette, dá uma tragada, solta a fumaça para cima e recoloca o cigarro no cinzeiro. Bette dá meia-volta, barulho de passos subindo uma escada. Novamente, ouvem-se barulhos de passos descendo uma escada. Bette entra na sala e se senta bem ao lado de Ana no sofá, com as mãos vazias.

Se você está curiosa porque demorou tanto? Me deixa com uma sensação de tempo esgotado… Pausa. Tanto faz. Vim até aqui te fazer uma pergunta… Precisava ser pessoalmente. – esta última frase diz num tom de exasperação, como que respondendo de antemão a uma pergunta que não lhe foi feita.

Antes, sou eu quem precisa te fazer uma pergunta. Andei recebendo emails nos últimos dois meses, emails anônimos. Aquele bolo de papéis que trouxe da primeira vez que desci…

– Quando?

– Você viu. No entanto, Ana, decidi de última hora não os mostrar a você. Foi você quem os escreveu.

– Eu sempre assino meus emails, além de que você conhece o endereço. Só uso aquele… Que bobagem precisar entrar nisso, que desagradável para nós duas…

– Não precisa me dizer o que é agradável o que não é. Sou eu quem evita o desagradável desde que começamos. Veja, digo que você os escreveu porque neste email a pessoa me envia seus textos, textos que você publica no seu blog em que a personagem é sempre uma B. Que por vezes parece você mesma, quase sempre parece você mesma…

– Preciso logo dizer o que tenho a dizer, acho que vai esclarecer muito disso para nós e terminar com essa tortura logo.

Bette sorri.

– Pelo contrário, para mim esta conversa tem sido muito agradável…

Toca o braço de Ana e lentamente sobe com os dedos até seu pescoço, arruma o cabelo de Ana. Que permanece imóvel e visivelmente tensa.

– Preciso logo dizer…

A cena sofre um corte e volta na última vez em que Bette reentrara na sala, tendo acabado de se sentar ao lado de Ana.

Então, vamos lá. Diz Bette com um sorriso gentil e demonstrando disposição de ânimo pela voz.

– Você recebeu minhas cartas?

Bette se abala e sua expressão muda ligeiramente para a surpresa.

– Tanta pressa para perguntar isso?

– Não, não é exatamente isso que quero saber…

– Então porque perguntar isso?

– É que eu sempre fui assim, meu pensamento é enevoado. Como se tudo estivesse obscuro por um certo mistério. É quando preciso escrever.

– Para mim?

As duas soltam uma gargalhada alta, riem até perder o ar, a ponto de saírem lágrimas dos olhos. Quando conseguem recobrar a seriedade, Ana começa a contar uma história:

– Hoje, B. – posso te chamar assim? – enquanto fumava recostada na janela do meu apartamento, olhei para baixo. Algumas crianças saíram do prédio para ir ao parque. Espere, vou chegar a algum lugar, tenha paciência. As crianças, para chegar ao parque, precisavam cruzar a quadra que já estava muito escura, era de noite. E então ultrapassaram a quadra correndo porque queriam logo alcançar o parque iluminado. Corriam de medo.

– Estou morrendo de frio. Levanta-se, vai até o cômodo contíguo, volta vestindo uma blusa de tricô. Observando a cena, Ana sorri.

E então pensei… Essas crianças, nós somos como elas, o que falamos é como essas crianças que correm desesperadas para fugir do que se esconde na escuridão da quadra. Nós corremos com as palavras com medo de esbarrar no desconhecido. Não suportamos a ideia de não saber absolutamente do que estamos falando. Como se sustentássemos uma ilusão de que o que dizemos é absolutamente entendido por quem nos ouve, e é impensável para qualquer ser-humano a incompreensão que o segue. Assim como a criança que está na frente, ao olhar para trás, sente medo porque sabe que é seguida mas não enxerga quem a acompanha.

Bette permanece em silêncio, olhando atenta e séria para Ana. As duas se conservam pensativas durante algum tempo. Em algum momento Ana, olhando fixamente para um ponto no meio dos livros, acena com a cabeça, como que dizendo sim ao seu próprio pensamento. Bette olha pela janela.

Já é muito tarde e você ainda não me perguntou o principal.

– Eu quero saber se você recebeu minhas cartas.

Estive muito ocupada. E isso não é o principal, vá logo ao ponto. Diga logo o que quer.

– As coisas estão espalhadas pelas cartas. É muito difícil solucioná-las a partir de uma pergunta.

– Então você está sendo precipitada. Deve esperar mais… Repense e veja se quer que tudo seja exatamente como escreveu nas cartas, olhe um pouco para seu passado e reconstrua-o mentalmente… Tenha paciência, você vai chegar lá.  Lembre-se de nossa conversa. Caso o contrário, nada jamais encontrará o seu sentido. Você teria me feito perder tempo. Nada faria nenhum sentido.

– Sim, estive correndo, mas minha pressa é em dizer as coisas enquanto ainda vivencio o mistério… Como quando você se apaixona e não há lógica, mas você vive mesmo assim. Tira prazer do amor e do mistério e não chega a lugar nenhum. Prefiro dizer as coisas enquanto não vejo o todo. Odeio distanciar-me de mim mesma, mas você, ao mesmo tempo, é essa distância. De todo modo, prefiro isso a encontrar logo o sentido e viver matematicamente.

– É onde está a beleza… Uma pena que não dura. Essa nossa conversa, por exemplo, que você tanto queria mas que na prática não consegue realizar, já deve ter escorrido para fora do tempo e nós nos prolongamos, como restos, como corpos cansados. Mais vinho?

Ana olha para a janela como que recobrando à memória que está muito tarde.

– Sim, por favor.

Simetria

16/01/2010

está chovendo?
(melodias ininterruptas aguinha de folhas e asas
procuro; uns sons. que os saiba; são aos versos)

tão escuros. e não prevejo borboletas; as procuro; todas escondidas
(respingando a chuva?)
pois chove… mas, não!
espere,
esperem, borboletas!
vocês esvoaçam
(eu sabia!)
bagunçando o meu estômago, estão em harmonia, essa bagunça,

tudo porque espero

(quando, tenho pressa!, procuro alguém
– rimas brancas, esvoaçantes, preveem alguém -)
a quem eu quero
(mas a rima, se procura – degraus –
alteia, escura e se desvia – a melodia –
dizverseia; já outra – se a altero

minhas asas)

B.

minha Björk

16/07/2009

É uma coisa tão pessoal que eu não posso escrever sobre ela. Não se pode despejar um acúmulo, espalhando as sensações e pensamentos, jogando fora o que é de dentro. A Björk compõe minha sucessão de estados de alma, e por isso eu não a compartilho com ninguém, seria por certo uma frustração, estados de espírito não encontram simetria. Há um desequilíbrio inerente, sempre separados. O que dizem sobre a união, a universalidade pela música, não acontece neste caso. Por isso também que raramente – muito raramente! – gosto do que leio sobre a Björk, ninguém sabe descrevê-la, tem sempre uma pretensão exagerada por trás, visível. Mas a Björk é tão poética e sublime justamente porque nunca parte de pretensão alguma. Ela é uma das poucas que tem plena consciência de que as melhores formas de arte atingem o sublime partindo do simples, do que se tem controle, e não querendo agarrar em desespero o que está além do próprio alcance. Artistas como esses são uma sorte muito grande, sorte nossa ter Manuel Bandeira, Tchekhov, Virginia Woolf… Enfim, importa é que não quero que ninguém aproveite a Björk como eu, do meu jeito ninguém pode aproveitá-la. Isto faz parte do meu estado de espírito, um pequeno momento – embora grandioso e pesado por dentro. E ainda que agora eu tenha absoluta certeza de que ele não vai terminar nunca mais, daqui a pouco já vai embora.

O cd que estou ouvindo repetidas vezes é o Vespertine, e não consigo, já há vários dias, ouvir nada além disso. Todo o resto é certamente incompleto e supérfluo.

Cada música é sozinha, são bloquinhos independentes, como contos revolvidos por uma atmosfera própria. Como pequenas bolas de neve, cuidadosamente moldadas para que ficassem com o mesmo tamanho (mas não resultam no mesmo tamanho pois foram feitas à mão e aparecem as marcas dos dedos nelas). Mas aí quando se juntam todas em um canto, vê-se que é tudo neve, é um todo que temos certeza que foi sempre assim, nunca separado. Mas aí se olha de perto de novo e se vê algumas marcas de dedos, são mesmo marcas de mãos que moldaram aquelas bolinhas de neve.

Neve como as cores da capa como as cores das músicas. Um contraste de branco e cinza é quase um contraste e às vezes não é. E também, não sei o nome ao certo das cores – os nomes escorregam, são como um lençol menor do que a cama, ou grande demais e sobra para os lados -, elas não têm nome em minha língua, mas o nome é apenas uma parte  da apreensão das coisas, elas, ainda que sem nome, não se deixam esquecer. Torna-se por certo uma tarefa constante para os olhos, as percepções ficam visíveis em todo o lugar, em todo o simples.

Por exemplo, olha-se para o rosto da Björk e ela parece uma criança, também pelo tamanho e pelo nariz arrebitado. Mas aí ela está com os olhos pintados e de repente se enxerga ali uma mulher maravilhosa, atraente ao extremo. Contudo, logo a sensação se dissipa, voltam o rosto e a voz infantis. A música então tem sons alegres, desconexos, e a voz ultrapassa os limites impostos pelo compasso em 4 tempos para quanto tempo ela quiser, cantando todas as notas que precisam ser cantadas, além daquelas que ela decide na hora adicionar, e então todo o resto é agora reflexo da voz, sem ter ultrapassado realmente o compasso. Ela canta e sorri em alguns momentos e junto com o arranjo dá a impressão que aquilo é felicidade extrema, mas então se presta atenção na letra e percebe-se que há ali uma tristeza profunda e constante, não acaba mais, não tem solução para a tristeza. Como tudo o que escreve Tchekhov, ou Bandeira. Aquela melancolia presente, que nos toca e nos deixa tristes, porém não se sabe bem onde ela está. E o que era tão simples é agora complexo e indefinido; ao mesmo tempo muito profundo. Profundidade que não se sabe de onde veio, só que agora já é tarde para se tentar descobrir, ela já está lá. E então a voz fica também melancólica e meio rouca, revela-se de súbito aquele encanto inerente às vozes que são roucas. Já se está a essa altura inteiramente absorto, envolvido, ao passo que tão distante e racional, pensando sobre a própria melancolia escondida. Plenamente lúcido e consciente de si. E de igual modo submetido à música, à voz, aos sons distintos e simples, bonitos, e quando juntos – porque aí entra a orquestra com todos os instrumentos – aparenta com certeza uma coisa pronta que nunca teve de ser construída pois aquilo tudo não precisa se justificar, tal é a naturalidade das confluências, como uma árvore que simplesmente nasceu e é tão bonita, não nos perguntamos como ela se formou já que para nós ela está formada, não tem cabimento ficar se perguntando uma coisa dessas. É assim que a música aparece ante os nossos olhos. Os ouvidos não sabem mais distinguir, estão de todo entregues, portanto são os olhos que têm de trabalhar, mas é uma união tão fluida que os olhos também já fazem parte do conjunto – e nem se teve tempo para notar! É esta a minha experiência, o total envolvimento junto com o cérebro trabalhando, sério, racional, pensando além disso sobre outras coisas, sem saber que é tudo sugerido pela música, sem poder distinguir ao certo, mas com plena consciência de tudo o que está dentro de mim, daquele mesmo modo que a música foi feita: sem a pretensão de tentar agarrar o que está fora, pois não se pode, está irremediavelmente fora do alcance.

Então eu vou colocar esse vídeo aqui, mas não deveria certamente tê-lo colocado, ele não serve para mais ninguém e no entanto ele precisa estar aqui. Sobretudo pelos últimos minutos da música, ouve-se a música só à espera deles e eles passam tão rápido que já se quer ouvi-la novamente. Refletem todas as minhas matizes internas, todas partindo do cinza (ou branco), sensações que talvez daqui a um mês não estarão mais nesse estado, com certeza não estarão, e o sentido do texto vai se afrouxar. Mas o da música não – já terá outro sentido, outro efeito (sem abandonar de vez o anterior) e nunca se torna uma relação de todo madura, pois sinto-me uma criança, achei na música conforto como uma criança o tem na própria cama, sabendo que a mãe dorme ou lê no quarto ao lado, está quieto, mas é certo que ela continua ali e se está aquecido pelo cobertor, pela janela fechada. E no entanto será preciso acordar no dia seguinte e ir para escola, ou trabalhar, ou ir embora. Mas por enquanto se tem o cobertor, enquanto isso se tem a música, um modo de se estar feliz e satisfeito sabendo-se entretanto que o momento deverá ser abandonado em breve, é ter uma felicidadezinha que dentro de nós é enorme e sem limites, ao passo que se tem total consciência de que por trás ou depois uma tristeza serena está esperando, repetida, já um pouco amaciada. Mas a vantagem é que, por exemplo, a aparente limitação em se ouvir uma só canção, um só disco, converte-se em liberdade, liberdade do que é supérfluo e pretensioso, de se ter consciência e assumir as coisas e ao mesmo tempo de se livrar delas, liberdade por dentro, enorme e sem limites, pela arte. Como quando era criança e enquanto brincava concentrada tinha certeza de que naquele exato momento a vida era ilimitada, daria os saltos que quiser, e no entanto sabia que muito em breve a felicidade iria acabar, tinha certeza de que ela iria acabar.