Abandono

22/10/2009

E deitada assim – uma mão sob a cabeça, os joelhos esticados sobre o colchão – esperava, olhando pelo grande retângulo da janela, como se não estivesse esperando por nada. Em aparência todo o seu corpo permanecia daquele modo sem esforço – era assim que alguém que entrasse no quarto avaliaria B., estirada, o olhar escondido em sombras que se derramavam contínuas no corpo de B., o ambiente todo imerso num escurecer forte que só dava importância às formas – quem entrasse, ao se deparar com tal confirmação do que estivesse esperando, sentir-se-ia plenamente satisfeito com o que viu e logo deixaria o quarto.

B. não notaria esta pessoa que, sorrateira, entrasse, saísse, e nem esta pessoa perceberia de fato o que estava ocorrendo com B., porque B., além de manter firme o olhar – a região acima do nariz enrugava-se em três dobrinhas – para além da janela, estava toda encoberta pelas sombras, que eram como roupas estranhas, por causa daquele entardecer escurecido (uma estreita faixa ensanguentava delicadamente o céu).

B., mesmo com o entrar e sair turvando o silêncio, mesmo que fosse, em outras ocasiões, muito atenta, não notaria o que se passou e permaneceria assim estirada. Tanto que, nesta infusão de abandono, obsessão e impulso silenciado, B. não perceberia a própria mão se fechando com força, e as unhas, há dias não cortadas, apertariam muito a pele fina de dentro da mão, de modo que, se abrisse a mão, ainda que logo depois de tê-la fechado, veria – se houvesse luz – as quatro marquinhas violentas sobre a pele fina da palma da mão.

B. – caso a pessoa resolvesse se demorar por mais alguns minutos e perguntar à B. alguma coisa – se fosse questionada pelo acostumado: Tudo bem? – perderia a razão (é assim que costumam dizer, “perder a razão”, já me disseram isto uma vez, ou mais de uma, pensou B.), a razão que já ameaçava ir embora e queria deixar B. sozinha, os pensamentos flutuando, abandonados, sem ter onde firmar os pés (não se assemelhariam sequer àquela ave decidida que acabava de cruzar a janela, de um lado ao outro, o voar amparado pelas próprias asas). B. levantar-se-ia num impulso, esconderijo das lágrimas, e gritaria inúmeros palavrões, muito brava, para esta pessoa, e mandaria ela se retirar imediatamente porque B. não queria mais ser incomodada daquele jeito, onde já se viu entrar assim num momento como aqueles, você não percebeu nada, que falta de tato, saia já daqui.

B., além de manter firme o olhar para o céu mais escuro, sentia-se estranha e pensava em coisas estranhas, imaginava o que não lhe era permitido vasculhar, impregnava-se de tremores por dentro, desejava fortemente despedaçar ossos, rasgar, com os dedos, uma superfície de pele macia – pequenas gotas, demoradas, escorreriam com delicadeza, contínuas no seu vestir incompleto a pele à mostra. (Conseguia, nas imagens disparatadas de sua memória, apenas se lembrar de uma mulher caminhando (se a pessoa que entrasse em seu quarto perguntasse: quem? B. não saberia se responderia a esta questão) e sendo recortada pelas retas da escada, enquanto B. abaixava casualmente os olhos, ali de cima da escada – tomara um susto petrificado ao ver o que viu, o que não se estava esperando (por que não podemos esperar pelas coisas? – perguntar-se-ia). E logo depois repetira-se a aparição, agora um homem, e B. encarregou-se de colar infantilmente os espaços vazios do desconhecer.)

Se as palavras pudessem lançar uma ponte com os sentimentos sem nome, o que sentiria seria como o que os olhos contemplavam: via-se muito, pela moldura de madeira ser grande, mas ao mesmo tempo via-se muito pouco, só um recorte de tudo naquela restrição retangulada. (Se alguém entrasse, diria: feche a janela, B.! já está na hora!, mas não, B. não poderia fechar a janela). De nada lhe seria útil fixar com tal dedicação o olhar num mero recorte, para nada lhe servia a aparência, a verdade. B., ainda estirada, estava agora trêmula, impotente. Se pensasse sobre isto, julgar-se-ia apenas uma fumaça, uma nuvem dissolvida e fraca perante a força desumana dos fatos.

Mas se alguém entrasse no quarto à escuridão daquela hora, não veria nada, sequer B., e abandonaria o quarto como se não fosse preciso ter entrado ali (como se nunca ninguém tivesse estado ali).

B.

B., tendo avançado até a frente da sala, lançou um olhar para trás e, numa compreensão tardia, prolongou-se em sua pequena decepção: uma cadeira, para onde olhava, estava sendo ocupada. Aquela cadeira agora indisponível! Gostaria de se ter sentado ali. Mas agora já estava ocupada (agora já foi! pare de pensar nisso, B. – diriam) ocupada por outra pessoa, um grande homem sentado ali e não havia mais meio de sentar-se ali, já foi dito que B. chegara tarde demais. Ainda olhando para trás, percebeu-se entristecida e boba, afinal, quem ficaria assim, tanto tempo em pé, quando todos já estavam sentados, quando já tentavam prestar atenção. Tinha um lugar seu, vago, não queria este. (No momento em que chegara sequer trazia desejos, mas agora tudo já se havia convertido numa grande decepção. O seu ser se arredondava naquele mundo pequeno de problemas: esfera cheia de tensões, vazia de sentido, cheia de vontades, vazia de vivência.) Sentou-se, pensativa.

A outra, acomodada na cadeira de trás, perceberia o atraso, aquele prolongamento despropositado da outra e não o compreenderia, não a compreenderia. A curiosidade, um imperiozinho, afrouxava furiosa os outros pensamentos, e estes restos de pensamento iam aos poucos se estreitando, desvalorizados, até sumir – demoraria-se deste modo, pensativa, e tudo o que estaria se esparramando pela sua cabeça flutuaria sobre, uma a uma, as cem razões – por que somos tão ignorantes? – pelas quais B. demorou-se assim, por mil segundos a mais do que o esperado, olhando para trás – não teria enxergado direito pois estaria ainda sem os óculos, e agora já estaria colocando os óculos, mas agora já seria tarde demais. Não saberia se o olhar da outra havia de fato recaído sobre ela, não saberia sequer se fora mesmo um sorriso insinuado o que teria visto pela metade naquela distância tão grande, ou um levantar inseguro da mão num aceno frouxo, importante – a coisa mais importante do mundo. Deixaria-se abandonar, pensativa.

Pensou: eu gostaria de que estivéssemos sentadas, lado a lado, fingindo prestar atenção mas na realidade querendo em todos os segundos virar o rosto para o lado, para poder observar longamente a expressão naquele segundo, no próximo, da sua cara prestando atenção em outra coisa. Como era interessante a sua natureza desprendida dos olhares dos outros e muito concentrada em outra coisa, ainda mais com um olhar tão próximo desdobrando os seus traços, ansioso, profundamente ansioso. Você, então, viraria-se duas ou três vezes durante o tempo em que estivéssemos sentadas uma ao lado da outra, mas viraria-se com o propósito definido – para que virar senão por uma determinação precisa? – de comentar alguma coisa ao meu ouvido, numa vozinha trêmula, e para mim esse timbre inseguro dos sons significaria algo outro e o comentário seria de natureza muito mais decisiva. Eu gostaria de que as suas palavras estivessem distantes dos seus pensamentos – seriam apenas um intermédio errôneo do que você e eu estaríamos pensando, tão mais próximo, como aquela proximidade real, irreal. Você faria estes comentários sem sentido ao meu ouvido, e de vez em quando desenharia algumas coisas, distraída (de verdade, de mentira), nas beiradas da folha do meu caderno.

B.

e você viria do jardim, ou da sala, ou da porta de alguma sala, e, ao me ver, mudaria de direção por ter me visto – pois estaria indo para o outro lado – e então viria sorrindo em minha direção, dizendo “Oi, B.”, de um jeito sério mas sorrindo. Minhas palavras iriam todas embora nesse momento, o turbilhão amorfo – repentino, conhecido – que faz com que me sumam as palavras – elas vão mesmo embora, somem todas, tudo o que treinei sozinha, falando com uma B. imaginária – assuntos sérios, piadas, comentários e detalhes da minha vida – tudo isto sumiria só porque você mudou de direção para vir conversar comigo, você viria e diria naquele tom de seriedade “Oi, B.”. E então eu responderia, Olá, tudo bem, e você diria sim, e você?, muito bem, só um pouco cansada e enquanto eu falaria sem sentir o mesmo que as palavras, você pegaria a minha mão esquerda, olhando para os meus olhos e sorrindo com a boca e com os olhos, com o corpo inteiro, tiraria a minha mão apoiada no joelho e a seguraria na sua mão direita – seria a primeira vez que eu te sentiria nas mãos, a sua mão quente, a pele firme. Você não apertaria meus dedos, mas conservaria os seus segurando os meus com determinação, como se dissesse (sem palavras): não, fique, não tire a sua mão daqui, continuemos assim de mãos dadas por muito tempo.

e ficaríamos com as mãos dadas eu, dando forma às impressões (você me aceitava, entendia meus olhos), você, calma, impassível, achando certa graça naquilo tudo, e deste jeito conversaríamos muito, sem nos preocupar com o tempo que passava, com as pessoas que passavam, ou se já estávamos de mãos dadas por tempo demais.

B.

Confluência

10/10/2009

– E então?

Em aparência havia concluído seu longo discurso e, como quem quer confirmar consigo a coerência das palavras aglomeradas, um pouco de intenção, um pouco de abandono: “foram reais?”.

B. ainda não respondia. Olhava-a insistente e profundamente nos olhos, sem arriscar.
As palavras aglomeradas se demoravam, demoravam tanto presas no terrível obstáculo que têm de ultrapassar – o medo – logo antes de rebentarem, como uma enorme onda que vai rebentar, expulsas pelos lábios abrindo, fechando -ainda, todas misturadas,
(em pré-estado
de letras,
em eterno estado
de semi-sentimentos)
– esperando uma resolução, dizer ou não dizer?, deveria se chegar logo a uma resolução. A resolução se demorava, zombeteira, estava já demorando muito. Ela, B., não falava, e com certeza não falaria mais, embora empanturrasse ainda a esperança das palavras que estariam por vir.

Pensava, somente, pensar sem dizer é como sentir pela metade – não só sentir, não só articular, como uma onda que não rebenta – não é só a planície do mar, não é meramente a onda que se finaliza: acomoda-se em curva, conserva-se um arco cheio de si mesmo, completo em sua tensão.

Pensar sem dizer é como apaixonar-se em silêncio, como a natureza, e sempre havia sido assim, a paixão a arrebatava com socos no estômago, que emudeciam, de raiva. Cobiçando e transbordando pelos olhos. Turbulências por dentro transtornavam-na, incessantes, os seus terríveis brados intervalados; uma onda que, após violenta, volta a se acalmar, forma logo um novo arco e então rebenta, o eterno retorno – agora não é mais do que a costumeira planície do oceano. Tal é o fluir e refluir dos sentimentos em intensidade, um mar invasivo. Expansões que retornam, restituem-se – exceto em momentos, havia os momentos de paz ou de ausência, de uma ausência de si, um fiapo de ser que se arrasta (os seus lastros na água), boiando e se arrasta. Tais momentos bons e raros – como tudo o que continua bom – invadiam-na numa surpresa, tão repentinos em sua lentidão!, pois ela estava sempre esperando, estava atrás de alguma coisa sem decifrá-la. Esperando; portanto, um mar calmo permitia que ela ouvisse os pássaros, os passos, as pessoas conversando. Um mar que não puxava tudo para si (o mar sempre puxava tudo para si). Pois ela obstinava-se por seu objetivo, mas não decifrava-o. “Desejar sem saber bem o quê”, ouvia-se uma voz, “é como caminhar pela praia”. E estes momentos belos, calmos, belos e calmos como uma caminhada à beira do mar (anoitecido), infiltravam-se, lentos, penetravam-lhe o espírito como uma onda que não rebentou, molhando-a por movimentos leves, apenas umedecidos, bem quando ela não os estava esperando. Sua vantagem (dos eventos, dos acasos), de se caminhar distraído, sem estar procurando o que está por vir, o que não se deixa ver. Fica-se apenas umedecido pela coisa e não encharcado por ela.

Então, o que inundou, inesperado, seu abandonar-se: B. se lembrou, sem razão, de quando caminhava distraída, sem olhar por onde passava; sem gravidade tencionava chegar a seu destino, qual era o destino?, fugia à memória. A lembrança percorria o caminhar, ainda que no momento em que caminhava não prestasse a devida atenção cuja futura lembrança iria requerer. Somente a lembrança deste caminhar esta particularidade esta distração. Passos lentos; arrastara os pés no chão que não lembrava mais se era chão, se era água, apenas caminhava (sem procurar). E, a turva surpresa, aproximava-se da outra. A outra – a mesma água, só que adiantada (tal não cessa o fluir a água) – um lugar tão inesperado!, agora já se lembrava de qual era o seu destino esquecido – esfarelado como areia – era a areia, lembrou-se de súbito por conta da outra que estava metros distante, pouco reconhecível (mas o suficiente para B. entrevê-la). B., infiltrando-se como a água que escorre em pequenos buracos deixados pelas conchas que abrigam pequenos animais, alcançaria aquele mesmo espaço em poucos metros adiante no todo inacabado de pequenos farelos.

Tão inesperado.

O mar fluía, refluía, ecoando o barulho das ondas que chamariam tudo para si, tudo para dentro daquele mar anoitecido, quente. As ondas se repetiam primeiro leves, em movimentos profundos, com gosto salgado, penetrantes em seus sentidos aguçados, em seu cheiro forte. Encontro de ondas em movimentos opostos que se confrontavam e confluíam em uma luta consentida. Encontro de ondas em movimentos opostos, ondas que se tocavam e sentiam-se. Completas, sentiam-se por inteiro, queriam ainda mais sentir-se, encostando-se, como corpos inteiros a encostar-se num unir-se fluído, ofegante, estreito querendo ser mais estreito, profundo, desejando sem fim. Desejar incitava desejos mais insatisfeitos, tornara-se indissolúvel o fluir e refluir das ondas encontrando-se, encostando-se voluntariamente. Como num mergulho, penetravam-lhe simultaneamente os corpos num movimento ondulado, repetido, molhando-as – as ondas – num contato leve, as pernas e os braços em seu tatear leve, como lábios que se impregnam molhando-se reciprocamente, umedecem no mergulho dentro daquele mar quente, com gosto salgado; ondas que agora intensificavam-se numa compulsão violenta: seus impulsos veementes e indissolúveis. Ambas as ondas – a que retorna, a que se aproxima – inundavam-se por mergulhos profundos, agitados, tal era o confronto, o oceano escuro (bradavam), o mar colérico. Repetições, corpos escorrendo, esvaindo-se em toques profundos, fluídos como por instinto, entregues como a um mar que tragava os abandonos (o imperceptível movimento provocante de trazer tudo para si).

Tais eram as ondas.

B. ainda não respondia.

Tais eram as palavras.

(“Foram reais?”)

E então voltou a si. Expirou, ou eram palavras, não se poderia distinguir, tal era o murmúrio – tão confuso, baixo, sequer ela ouvia o final de suas palavras, tornaram-se ininteligíveis, esvaíam-se submissas aos sons dos pássaros, dos passos, das pessoas sussurrando, o som se encurvava como uma onda que, depois de ter invadido, completa, o todo da areia, renuncia-se ao retorno para o mar que arrasta tudo para si, mansa e tênue, deixa, em seu abandono, um fraco semi-círculo, um fraco eco de sua curvatura fraca, ininteligível.

B.