“DORN – Pois eu acredito em Konstantin Gavrílitch. Há alguma coisa nele! Há alguma coisa! Ele sabe pensar por meio de imagens, seus contos são expressivos, vivazes, e provocam em mim sentimentos fortes. Só lamento que ele não tenha propósitos mais definidos. Cria impressões e mais nada, e o problema é que não se pode ir muito longe apenas com impressões. Irina Nikoláievna, a senhora está contente por seu filho ser escritor?
 
ARKÁDINA – Imaginem só: eu ainda não li. Nunca tenho tempo.”

Trecho de A Gaivota

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Lentidão nos movimentos de quem filma e quando a câmera parece ter encontrado o centro, conserva-se numa só personagem durante muito, muito tempo, esquecendo-se do tempo, como se nos estivesse pedindo uma atenção minuciosa. Pois deve-se prestar a máxima atenção no que é pequeno, a máxima atenção, já que sem os detalhes o filme não seria nada, e pior!, sem detalhes não haveria Tchekhov para se adaptar. Deter-se ao mínimo, em uma personagem por vez, culmina em individualidades isoladas: o que era lírico transmutou-se em drama – mas se o drama resolve por ser algo outro, a essência dramática se ausenta de todo – é uma transposição definitiva! – e não há mais possibilidade de que ela reapareça em lugar algum, a intersubjetividade é requisito para o drama. Não há solução para o isolamento. O diálogo como uma poça de água, um lago parado e, uma vez que ele não corre, não empurra o que está na frente e então o tempo se acumula como num poço, parado, antigo – e por isso não há ação para se desenrolar. Tudo permanece coagulado dentro das personagens, impotente para sair, um acúmulo latente, demasiado, antigo. O peso está então no implícito – como quando se sobrepassam os diálogos inexpressivos, vazios daquele acordo mútuo inerente à conversa – sobrepassagem por superfícies – só se vê, devido ao enquadramento, uma personagem; ou seja, o interlocutor (por mais irônica que esta denominação se torne aqui) está também implícito. O diálogo converte-se quase totalmente em um monólogo, e a atmosfera opressora deriva justamente do fato de ser ainda um diálogo. E para todo esse desespero silencioso, há um cenário natural – parece-me a realização do que chamam paraíso – como um contraste necessário e que, ao invés de atenuar o que há de ruim por dentro, intensifica-o, um contraste necessário. De modo análogo, a presença da criança desvela nuances com as outras personagens, sobretudo com sua mãe e com seu irmão, pois eles estão envelhecidos. Envelheceu a pessoa e o que está dentro dela, tudo o que um dia se sentiu já não está mais presente e escapa à presentificação dramática – o sofrimento, por isso, também não pode simplesmente se explicitar, compartilhar-se.

Duvidei que a atmosfera da peça A Gaivota pudesse ser transposta a uma adaptação livre, pensei ser impossível que uma mesma sensação se sustentasse no que não estivesse dentro das escolhas do próprio Tchekhov. E no entanto estive enganada, pois em Entardecer, Angela Schanelec (que dirige e atua em seu filme) conseguiu traduzir, através de uma recriação – dever de toda boa tradução – para o cinema, para outra língua e para o nosso presente antigo século o teatro-sempre de Tchekhov (ainda que a forma deste nos leve irremediavelmente a pontes históricas), utilizando com perfeição e sem abuso os instrumentos da arte que está a sua disposição, arte esta que ultrapassa o teatro pelas inúmeras (e portanto perigosas em sua facilidade) possibilidades sugestivas. A consciência dos recursos cinematográficos nesta, eu diria, brilhante alemã é tão plenamente adequada para o projeto em questão que ela abandona também quase em absoluto o recurso musical, decisão que, além de aproximar mais o filme da arte de um palco, obriga-nos à concentração máxima nas personagens, deixando então o espaço necessário para que se revele – ainda que a visão seja turva e difícil – tudo o que nelas está escondido. Só assim se torna palpável a atmosfera de opressão e sufocamento, ilhas com paredes. Não há solução para a tristeza e não se sabe bem onde ela está, mas ela está lá, pronta a nos atingir, tão onipresente (como já disse um dia sobre o Tchekhov). Percebê-la é uma tarefa que não permite nenhuma distração, para que se veja o que por costume já supomos que vemos (mas que em verdade prevemos, como diz Valéry) e também o que é invisível a nossos olhos arrogantes, impacientes. E então, realiza-se uma das consequências mais graciosas – nessa hora se respira com alívio! – de uma boa obra de arte: ilumina o resto. Até o simples necessita de atenção para ser de todo revelado à vista; é justamente este simples que faz ver e ultrapassa a mera forma para uma irradiação sublime: transcende o limite que aparta a arte da vivência – tão longe da arte! – cotidiana. Eu diria: uma sorte em meio à tristeza – que além de incomunicabilidade entre as personagens é também nossa mudez cotidiana, um isolamento sufocante, trancado – e que por isso é ainda mais sorte.

“AGNES – Mas o cachorro estava ótimo. Ela atuou muito bem, como se não estivesse no palco, mas fora, no campo, completamente só com o cachorro. Ela não tinha nada, nenhum galho ou bola. Parecia estar arremessando alguma coisa que o cachorro trazia de volta. Mas ele também não tinha nada. Ela o acariciava e segurava algo diante dele. Você sabe o que quero dizer? Não sei como ela fazia, é um mistério.
 
KONSTANTIN – Não estou mais interessado na minha mãe.
 
AGNES – Foi maravilhoso.
 
KONSTANTIN – Você está me ouvindo?
 
AGNES – Você envelheceu.
 
KONSTANTIN – Envelheci?
 
AGNES – Há um monte de coisas interessantes. É sempre assim, nunca mudará. Quando estou sozinha, vejo tantas coisas… Todas as coisas girando ao meu redor e estou feliz. E penso que preciso encontrar algo decisivo que me leve para adiante. E se falo com alguém, isto não é algo decisivo. Mas sei que está escondido em algum lugar.”

Trecho de Entardecer

arranjo

23/04/2009

Impressão
vale
escrever sentir
expressar
sugerir perceber
estranhar?

A forma tem
mais de sentido do que ele mesmo?
Pois querer dizer
afinal
por vezes ilude.

(mas formar
movimentar
arranjar
não é também iludir?)

A forma é uma percepção
de formar ou de ver a forma?
Pois presenciar é uma total absorção pelos sentidos
mas aí
o sentido externo escorrega
oscila.

Fio da memória
(tenho por misturas acumuladas):
passos que se arrastam, perfume (só um relance), sombra das costas na sombra
projetada no acaso de contrastes
Mas luz, sombra:
Opostos são sinceros?

Pois assim é a ligação entre objeto e sentido:
turva
livre
(e no entanto nada “é assim”)

Opostos
expor só por opostos
encurta
pensar e sentir
Limita o sentido.

Entre um extremo e outro
há espaço

Espaço incerto, livre
Todas as oscilações
Todas os matizes
Todas as percepções
desiguais fragmentárias
entrecortadas.

Entre um extremo e outro
há espaços.

Pois assim é a ligação entre objeto e sentido:
nada imediata para a reflexão.

Estranhar
é uma delicadeza da forma
(de formar ou de ver a forma?)

Raízes
como convenções
e raízes imprevistas
vazio, no nada?

Nada
fácil, usado, reconhecível
é capaz
é sutil
é difícil.

A ligação entre objeto e sentido é livre
mas e a expressão?

A liberdade implica seus próprios procedimentos
(e no entanto nada é assim).

B.

escorço

05/04/2009

duas formas voam

uma delas um papel
que mantém-se no nada
a outra talvez um pássaro
que está mais perto
concomitantes

não na mesma direção
nem para lados opostos
uma aleatoriedade difícil
nem no mesmo compasso
uma aleatoriedade difícil

são como uma harmonia
dissonante, insólita
como vozes soltas
sem ordem, narração, objetivo
como uma mulher que
olhando as duas xícaras na mesa posta
sente angústia, prisão
igualmente amor

simultâneos
sob o mesmo céu apático
aproximam-se ao acaso

o pássaro agora não é mais pássaro
é uma presença do meu olhar
é antes
e é depois: o poema
refletir deixa o objeto impregnado de reflexões
a pipa não é, sou eu quem a vê
como em um estado anterior
ao facilitado, utilizável
ao é assim

uma forma rabiscando o céu
não é obstinada

duas formas
mas não o marcam
o céu

a cena
quieta e quase pronta
antes:
o olhar vagava
e encontrou
depois:
como uma ponderação inacabada
interminável
difícil

a aproximação
pelo olhar
pela arte

o acaso que se destina
mas não sei
o acaso escapa
sobra um escorço:

concomitância
de duas formas voando

como se o movimento lhes fosse a única unidade necessária

B.