Claridades

13/04/2010

De um ou outro modo eu poderia, afinal, começar descrevendo este belo jardim, que em sua plenitude não é só belo, basta deter-se em alguns detalhes da velhice que se apresenta por aquela folha escurecida ou por aqueles pequenos animais mortos ao chão; ou eu poderia escrever sobre todas aquelas pessoas sentadas esperando não se sabe direito o quê, mas nada nos seus rostos apaziguados, tristes ou envelhecidos, desperta curiosidade em quem olha para eles, pois afinal poder-se-ia perguntar: o que estão esperando? Por que não há lugar para sentar? Esperas não dão nenhum sossego, porque eles fingem estar sossegados? O QUE HÁ DE ERRADO COM VOCÊS?! Que coisa absurda esta fila longa e enfadonha, imagine só, ficar aí durante horas! Mas nada na sua expressão desindividualizada (é por isso que não gastaria meu tempo descrevendo rosto por rosto) desperta sequer um muxoxo de curiosidade, e eu nunca escreveria nada sobre esta cena infame e vulgar.
Outra coisa sobre a qual eu certamente poderia escrever um conto prolongado ou até um poema é a voz daquela mulher alta: quando a escuto falar sou surpreendida por nuances inesperadas na voz que a preenchem com mais doçura… De repente, sobressai uma espécie de rudeza original da tessitura que no entanto a torna mais encantadora, esta voz que tanto aprecio escutar e compreender as nuances expressivas, e unindo-a com seu olhar nascem espontaneamente deliciosas ambiguidades (deliciosas e insolúveis) – e é por certo um assunto que interessa infinitamente a todas as pessoas do mundo, seria do proveito de todos que se exprimissem mais ambiguidades, matizes de cor ou tonalidades musicais (como a voz desta mulher alta).
Porém nada me interessa mais do que eu mesma, então seria do interesse de todos que eu explicasse, utilizando meu método de abstrair conceitos em imagens, minha enriquecida experiência desta tarde, em que pude ouvir um concerto de Egberto – sua loucura desautomatizada cujo lençol subterrâneo de racionalidade arraiga seu solo de criação, deixando crescer imensas árvores inesperadas e com galhos absurdos, errados e no entanto coesos; ouvi durante a tarde uma mesma música pois ela, de modo muito pouco racional, se esgueira para determinados cantos minúsculos ainda não atingidos de meu espírito – e por isso sinto cócegas da primeira vez. E então quero ouvir de novo porque logo já estou criando uma narrativa imaginária (ainda que apenas na segunda vez) insinuada pela música (fico satisfeita em poder fazer como o cinema que submete a música à sua ditadura de distração) – imagino minhas pessoas queridas andando e agindo no mundo criando suas próprias ambiguidades (para um atento observador de fora) em conjunto com a música, que preenche os recantos da cena com essas minhas pessoas queridas caminhando e conversando, abaixando-se ou sorrindo, assim como a música uniu-se numa dupla com vãos de minhas sensações, casal de que derivam ambiguidades e bonitas incertezas. Sim, incertezas, porque não nos esqueçamos de que estamos tateando música com palavras, e falar sobre música é incerto, além de, é claro, absolutamente sem sentido uma vez que os conceitos no mundo já estão bem firmes, e só podemos falar com a nossa boca, então, do que já existe no mundo e nada do que é novo ou transformado em nosso interior, porque ainda não se inventaram as palavras necessárias (mas esperemos, esperemos enquanto prestamos atenção à música). Contudo quem é que precisa de palavras quando no mundo já existe tudo de que precisamos? Não se precisa de nada! Desligue este som!
A música dá a ver o que transborda de meu espírito e nada deve sobrar a ponto de não caber em si.
Ou quando alguém sabe o que é um hipopótamo pelo documentário de terça-feira e por isso nunca leva seu filho ao zoológico.
B.

2 Respostas to “Claridades”

  1. Nah Says:

    “Esperas não dão nenhum sossego, porque eles fingem estar sossegados?”

    “Contudo quem é que precisa de palavras quando no mundo já existe tudo de que precisamos? Não se precisa de nada! Desligue este som!
    A música dá a ver o que transborda de meu espírito e nada deve sobrar a ponto de não caber em si.
    Ou quando alguém sabe o que é um hipopótamo pelo documentário de terça-feira e por isso nunca leva seu filho ao zoológico.”

    lendo seu post, imaginei um musical. mais bonnito que os musicais de moças bonitas, tipo Chicago e Nine.

  2. Rastaman® Says:

    Nossa, Parabéns! Essa leitura me fez lembrar de Lev Tolstói, já que em suas obras ele sempre abria espaço para esse tema que tanto lhe interessava: música.

    http://apontamentosculturais.blogspot.com/2010/06/musica.html

    abraxxxxxxxx


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